Machado de Assis. Memórias Póstumas de Brás Cubas.
Nunca tivemos tanta liberdade quanto a que temos nos dias de hoje. Liberdade individual, de ir e agir, de viver cada um à sua maneira, de levar a vida como entende, sem ser restringido por discurso cerceador ou moralizante de nenhuma sorte, sob pena de poder-se sempre processar quem quer que seja que intervenha contra a nossa sagrada, custosamente adquirida, liberdade.
Fugindo das amarras das convenções, dos grilhões da história, do preconceito e dos atavismos, conseguimos, enfim, possuir, pelo menos em tese, pelo menos na lei, a liberdade que desejamos, aquela boa e necessária possibilidade de sermos senhores do nosso destino e fazermos da nossa vida aquilo que bem entendemos.
O grande paradoxo é que, diante desse bem precioso que é a liberdade, o sofrimento continua a dar as caras em todas as suas cores diante de nós e também dentro de nós. Basta olhar de relance à nossa volta: vivemos em uma sociedade doente do sentimento. Desconsiderando a expressão superficial e exterior das agressões entre os indivíduos, na intimidade de cada um persiste a insegurança e o medo, a sensação de traição e abandono, a mágoa e o remorso, o desânimo e a desilusão, a raiva e a impaciência, a tristeza e o desencanto... Seria demais enumerar todas os sintomas da sociedade do desamor.
Tragicamente, o sonho do amor perfeito parece ter mesmo sido sepultado com Romeu e Julieta em seu sonho na juventude. Na sociedade movida a aparências de felicidade, nas cores inebriantes da moda e à luz da lei do mais rico, impera o pragmatismo das relações fortuitas e casuais, dos encontros impelidos pelos apelos do corpo, da pouca, quase nenhuma, possibilidade de doação e entrega real. Não temos tempo de esperar o tempo do outro, a vida é rápida e é preciso pensar em nossa própria satisfação em primeiro lugar. Isso é o que chamamos de gostar de si.
E assim os consultórios psicanalíticos, que à época de Freud curavam criaturas castradas e reprimidas, recalcadas e neuróticas, hoje trata doentes vitimados pela liberdade em excesso, por terem se permitido ferir-se e ferir outros, na busca exclusiva do amor a si, que nem merece esse nome, senão outro, egoísmo, a expressão crua e dura, humana, do ego sobre todas as aspirações que poderiam um dia ser realmente superiores.
É a sociedade frenética, o vai-e-vem, a velocidade dos encontros e desencontros em chats, em baladas animadas e entorpecidas, com muita música, muito som, muita bebida, muito glamour, mas sem nenhum amor. Alegrias que duram a dose de um energético (com ou sem adicionais).
Nessa sociedade, estamos, de fato, construindo uma moral compatível com nosso mundo, uma moral elástica, industrializada, de papel. A nossa moral permite-nos usar as palavras como queremos, esvaziando os seus significados. “Eu te amo” não tem mais o peso e o valor que um dia já teve, pois às belas palavras, não se somam mais a força das condutas, falamos, falamos, pobres daqueles que ainda acreditam. Estamos mesmo na sociedade da propaganda, das palavras vazias e inúteis, do "te amo" sem cor, sem emoção, sem sentimento. É a nossa campanha de marketing.
Pois, na verdade, o capitalismo pós-industrial inaugurou nos tempos modernos também a lei da barganha de sentimentos: migalhas de atenção aqui compram o interesse dali, ou então a sessão de cinema que acaba saindo de graça ou então, quem sabe, aquele presente que sempre quis ganhar. Compramos os sentimentos, pagamos o seu preço, mas também colocamos muito de nós à venda. Queiramos ou não, vendemos e negociamos: o que temos e o que não temos, o nosso tempo, a nossa atenção, a nossa vida, a nossa casa, a nossa saúde, o nosso planeta, até mesmo a nossa liberdade. No final da negociata, ainda estamos insatisfeitos, uma sensação de vazio, e de que alguma coisa não saiu bem permanece, em casos extremos, leva a atitudes igualmente extremas.
A conclusão, em suma, é que os sentimentos que temos, não vão além das impressões mais superficiais, e, por conta disso, em que pese também a irrefreável necessidade de olharmos para nós mesmos somente, somos construtores recíprocos da nossa desilusão amorosa. Chamamos de amor a presença de tudo, menos Amor, em nossas relações.
No final de contas, o saldo final não parece ser ainda satisfatório, vivemos a vida pelo prazer, mas não encontramos o prazer simples de viver a vida. Quisemos demais ser amados e não amamos. De fato, nunca tivemos mesmo o Amor, pois o amor que temos é o amor que damos.
Ah... o Amor.
Ainda que eu falasse a língua dos homens e dos anjos, mas não tivesse amor, eu seria como o bronze que soa ou um címbalo que retine. Se eu tivesse o dom da professia, se conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, se tivesse toda a fé, a fim de remover montanhas, mas não tivesse amor, eu nada seria. O amor é paciente, é benfazejo; não é presunçoso, nem se incha de orgulho; não faz nada vergonhoso, não é interesseiro, não se encoleiriza, não leva em conta o mal sofrido. Ele desculpa tudo, crê em tudo, espera tudo, suporta tudo.
(I Coríntios 13)