segunda-feira, 2 de junho de 2008

Nau desconhecida

"É que tudo se acha fora de um livro falho, leitor amigo. Assim preencho as lacunas alheias; assim podes também preencher as minhas."


Machado de Assis. Dom Casmurro.


Leitor amigo, no livro da vida, ainda que pese a metáfora desgastada, muitas vezes pensamos que já conhecemos todas as saídas, ou, pelo menos, os caminhos de fuga principais, nunca se sabe lá. O que não conhecemos são as páginas em branco que encontramos logo em seguida, ou, o que é mais dramático, nem sequer esperamos que elas estejam lá, cândidas e brancas, a espera de serem escritas.


Naquele dia, a chuva finíssima tornava branca a janela do ônibus, e opaco estava aquele horizonte. Pessoas adormeciam na manhã de domingo, mal-ajeitadas nas poltronas macias do veículo veloz, que singrava as estradas molhadas como as caravelas antigas. Diferente das embarcações, aquela nau sabia o seu destino e, aparentemente, pelo que contam os registros, a hipótese de uma descoberta era inverossímil. Páginas cotidianas, em branco e preto, aquela pessoa lia, na poltrona 15, nem longe demais do acesso à saída, nem perto demais do fundo do veículo: perto o suficiente dos caminhos de fuga principais, nunca se sabe lá.


O jornal amassado, dançando nas mãos que, inquietas, o amassava; a mente estava distante o suficiente. A cada passo previsto, nada que pudesse ser considerado uma surpresa, nem mesmo aquela chuvinha, garoa fininha, fria, pobres dos moradores de rua, pobres daqueles que estão do lado de fora da sociedade e expectam o rico colorido das cidades, cobertos de cinza e nada mais.


Por um instante, era possível acreditar que tinha controle absoluto sobre a situação e sobre o dia, o domingo arquitetado a quatro mãos, há quatro dias, há quatro meses esperado. Ou melhor, há quase quatro meses: no dia em que “o amor era possível”. A caravela singrava os mares de pedra e a rica cidade de pedra surgia aos olhos, o jornal era apenas um (pre-)texto. Nada mais que palavras, muitas verdades se dizem mesmo é no silêncio, estou farto de todas elas, nem as digo, nem as quero ouvir mais, pensava.
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Para falar ao vento bastam palavras, para falar ao coração são necessárias obras, dizia, no roda-pé do jornal de domingo, o verso célebre, que comemorava o quarto centenário do grande literato, cuja comemoração ali, palidamente, se anunciava, no rodapé, entre crimes e outros escândalos: há sempre mais espaço para eles nos jornais!


“Para falar ao vento bastam palavras...”, ele pensou. A linguagem dos atos é mais poderosa que aquele vento frio, das ruas da grande cidade, a cidade que trabalha não importa se é domingo, não importa se é de manhã, não importa, enfim, se a chuva traz o frio e se as pessoas preferem, enfim, dormir naquele ônibus, como a senhora que se acomodava no ombro do rapaz.


Mas a vida, leitor amigo, é um livro falho. É um livro cujas páginas não têm numeração, não importa a ordem em que se leia, nunca saberemos quando, nem se chegou ao fim. Aquele jornal tinha páginas contadas e, na parte inferior de um de seus cadernos, onde mesmo a citação de Vieira, o poeta quadricentenário, tinha se encontrado, “para falar ao coração são necessárias obras”, na mesma página, ali também se anunciava a apresentação musical da cantora de voz doce, de letras serenas e suaves, que tinha a amplidão do céu em seus tons e a bravura do mar em sua voz. Aquela apresentação que era planejada e se conhecia, há quatro dias, quatro semanas, quatro meses e (por que não?) quatro anos esperada.


Belíssima voz, serenas músicas e até mesmo, difícil de se dizer, vivas cores daquele espetáculo, que ficaria impresso em CD e, o que é mais duradouro, na memória daquele viajante, que, então, apenas segurava um jornal e olhava as saídas, como se as conhecesse todas, nunca se sabe lá.


Não seriam planejados, ainda, o abraço a ser recebido e aquele sorriso, aquelas mãos que lhe aqueceriam à noite. Não foram planejadas muitas outras coisas que, como dizem os relatos, tornariam o dia frio de domingo em um dos dias mais calorosos já vividos nos últimos tempos, o dia em que não foram ditas palavras, estas que os ventos levam (já dizia Padre Antônio Vieira...), mas foram trocados gestos, abraços, beijos e olhares. Aquele olhar em que o viajante da caravela se perderia. Aquele olhar que haveria de mostrar ao rapaz do jornal que não se planeja a vida como se quer, que a vida é tal como um livro falho e contendo páginas avulsas em branco.


Nesse livro, leitor amigo, as lacunas de uns são preenchidas por outros. É um livro em que cada um se entrelaça em um movimento muitas vezes anônimo, mas essencial: a senhora adormecida no ombro do jovem, este que resolvera, então, também deitar sobre aquela senhora anônima – e desistir da leitura do jornal. Este, o da apresentação da cantora bela, do verso de Vieira. Faltavam apenas alguns minutos. Faltavam apenas alguns minutos. Faltavam apenas alguns minutos. Para dizer no telefone, ainda perdido naquela imensidão: cheguei.
Secva.