segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Luz da Aurora

“Te comportas como se tivesses perdido a língua. Em vez de bebida e comida, devoras teu próprio coração”.
Homero.
Odisseia, X, 377.

Barulhos estridentes se movem no céu. E, então, aqueles brilhos também ecoam. Você vê criaturas que costumam chorar quando as emoções contidas vêm à tona, mas não lágrimas, pois na face os sorrisos apenas transmitem alegria e, então diz: Feliz Ano Novo! Há quem acredite que o tempo é linear, assim você aprendeu, ao menos, na escola. Quem nunca viu aquela famosa linha do tempo, com a professora de óculos explicando as fases da História? Mas você desconfia que o tempo tem as suas circularidades e volutas, como naqueles afrescos das igrejas antigas. O tempo é quase barroco. Quem se importa com o tempo? Você vive-o, e a música, de repente retorna à sua memória: “Roda mundo, roda gigante, roda moinho, roda pião, o tempo girou num instante, nas rodas do seu coração...” Agora, no fim da História, a letra ressurge para a singularidade do tempo. No fundo, você sabe que é inútil meditar as etiologias. Etiologias... Você se irrita com seu vocabulário filosófico. No início, tinha o sabor das palavras precisas, depois se tornou um vício. Você sofre das palavras. Mas você é professor de filosofia e estudante de grego. O seu nome é Ulisses.

Ulisses, o viajante indefinido, perscruta o seu coração, você chegará a Ítaca? Há sempre o receio de que, no segundo dia, 2011 seja sempre o mesmo de sempre, um dia a mais, que pouco ou nada transforma as criaturas. Você tem medo de não ser capaz. “Porque você chora, que dores sacodem o seu peito quando alguém se refere à ruína de Troia? Não és Odisseu? O bravo e corajoso matador de Argos?” Ítaca está longe, Helena está longe... Você está longe. Longe por estar perto do coração selvagem. Apesar da música que era sua: I have climbed the highest mountain/I have run through the fields/ Only to be with you.../ I have run, I have crawled, I have scaled the city walls/ Only to be with you… No disco do U2 que nem mais roda, você julgou ser capaz de algo maior que si mesmo, você se surpreende com sua capacidade, mas. A vida ou sete anos esperaria mais, como Jacó, se não fosse tão longo amor para tão curta a vida!

Aporias da vida, o andar falso e trôpego pelos dias. O estar contra o muro da impossibilidade, eis que lá surge, minúscula, aquela passagem antes impensada, a saída, através da qual não se observa a liberdade, mas se antevê o sonho. Pois sonhar é uma modalidade de ser livre também.

Coriscos que tingem o céu e celebram o fim da primeira década, na noite festiva. O dia último do último ano da primeira década do milênio em que o mundo acabaria. Mas não acabou. Você sabe que tem uma tese a ser escrita, você sabe que tem anseios afetivos a serem contemplados, você sabe. “É preciso que se saiba. É preciso que se saiba. Que a vida é curta. Que a vida...” Não termina. Você sabe que o seu nome requer um heroísmo, mas acaba sendo, no mais, um trocadilho. O estudante de grego que se chama Ulisses. Seus alunos nem tão interessados assim estão no épico. Não há espaço para a poesia mais. Não há espaço para o heroísmo. Somente as emoções comezinhas e banalizantes, pragmáticas do dia-a-dia. Feliz Ano Novo!

Por que você pensa em tudo isso ao ver que as pessoas choram? Aquele brilho é amargor das almas que saem dos olhos. É o sereno do fim da noite. Porque, salvas raríssimas pessoas, há alegria. De resto, mímesis. Imitação da vida, código social. As pessoas choram por antecipação, ao brilharem seus olhos. E depois passa, o mundo gira e o tempo também.

Você está triste? Não. É catarse, purificação trágica, a expurgar da sua alma os vestígios da hybris. Os vestígios da sua falha trágica. Você está triste? Não. É o reconhecimento tácito da aporia. Não há saída. Somente racionalização. É a sua busca pessoal pelo Agape, o amor puro e essencial. Este, do seu coração. Com o sereno, a noite, por assim dizer, acaba.

É a Aurora chegando, salvando você da escuridão.

Trezentos e sessenta e cinco dias. Ou um a mais. Um ano. Adeus ano velho!

Se não há coragem, que não se entre, que se espere o resto da escuridão diante do silêncio, só os pés molhados pela espuma que se espraia dentro de nós. Que se espere. Não o fim do silêncio, mas o auxílio bendito de um terceiro elemento: a luz da aurora.
(Clarice Lispector. Uma aprendizagem ou o Livro dos Prazeres)