sexta-feira, 13 de março de 2009

Dois mitos greco-romanos

1) Anquises não era um deus, mas era príncipe de Troia. Admirado pelos belos cavalos, diz-se ter sido bravo em sua juventude, e, não por acaso, amante da deusa Vênus. Já na velhice, com o artifício grego, do cavalo de madeira, vê sua cidade ser invadida e destruída pelos gregos. É seu filho, semideus Eneias, filho da deusa do amor, o responsável por liderar os remanescentes troianos e conduzi-los a um lugar distante, onde seria fundada a Nova Troia, no Lácio, a que seria futura grandiosa Roma. Eneias, é piedoso por excelência, do latim pietas, o sentimento de dever e afeto com os pais, em meio às chamas da cidade, exilado de Troia, tem o grande dever de fazer das cinzas, como a fênix, sua cidade renascer distante. O pai debilitado, Anquises, conhece a destinação superior do filho e não o retém. Mas o jovem, enfim, convence o velho pai a ir-se com ele e o leva em seus braços.


Sus, meu pai, eu te ajudo, às nossas costas
Sobe-te, ó caro, não me agrava o peso:
Em sucesso qualquer teremos ambos
A mesma salvação, comum perigo.



(Virgílio. Eneida, II, 730-733)



"Fuga de Eneias de Troia" - Federico Barocci., 1598. Galleria Borghese, Roma.












Vaso grego representando Eneias carregando Anquises. Museu do Louvre.



2)
Dido, a bela rainha da mais próspera, Cartago, cidade do Mediterrâneo antigo. Recebe os exilados troianos, que de longas aragens do mediterrâneo, chegam exaustos, exilados da Troia destruída. Seu lider é o belo Eneias, na cidade cultivada e rica recebe assento, como príncipe recebe honrarias, e atentos ouvidos da digna dama. O trabalho de Vênus torna a rainha por ele apaixonada, mas enquanto se enleia em suas palavras, Eneias precisa partir. Precisa continuar sua jornada, fundar sua cidade. Em vão a jovem rainha protesta, clama pela presença do amante, oferece-lhe seu reino e sua vida. Eneias parte, às escuras, ocultamente. A dama vê, no nascer da aurora, os rastros longes dos navios que partiram. Sem aquele amor, não se considera digna de viver. Reúne em seu claustro as belas damas, empunha bravamente a espada troiana, aquela de Eneias, como regalo recebida. Brada.


Inulta morreremos?...
Pois morramos! Sussurra; assim aos Manes,
Assim desço contente. O cru Dardânio
Do mar a vista embeba nessas chamas,
E estes mortais agouros o acompanhem!
(Virgílio. Eneida, IV, 689-693)

O Dardânio cruel, Eneias. Segue adiante, com sua esquadra, no horizonte desaparece do mar cristalino, uma nuvem de fumaça fúnebre talvez avistem, da jovem Dido, exangue caída, com as mãos tingidas do próprio sangue.





"Eneias narrando a Dido as infelicidades da cidade de Troia" - Baron Pierre-Narcisse Guérin, 1815. Louvre.






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Traduções virgilianas de Odorico Mendes (1799-1864).

sábado, 7 de março de 2009

saudade roseana

As coisas assim a gente não perde nem abarca. Cabem é no brilho da noite. Aragem do sagrado. Absolutas estrelas.
Guimarães Rosa.

Uma homenagem ao meu Diadorim


Antes de tudo um forte: mais de uma vez, essas foram ditas, palavras de Euclides da Cunha, não de Guimarães Rosa. Mas o que importa: quando se está no sertão perde-se a noção de autoria, e quem um dia radiografou o solo e a paisagem, poderia também, como este, radiografar a alma do sertanejo: o senhor sabe? Já tenteou sofrido o ar que é saudade? Diz-se que tem saudade de ideia e saudade de coração.
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Dizem que saudade corre com a distância ou com o tempo, mas também existe saudade anunciada. Ou nunca quis que um dia fosse mais que um dia, ou uma noite, mais que uma noite? Que o tempo parasse, que as horas se alongassem, para o tempo parar?
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Pois é. Digo que também eu queria ser como Júpiter na mitologia antiga: queria ter o poder de alongar as noites. Dizia, outro dia, que o mundo romano é também como o nosso. É e não é. Ou, então, me pergunto: será que Júpiter, para ter Alcmena ao pé de si, alongava a noite porque também não queria esperar? Por que também amava?
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Parece que não: para os romanos, a paixão é indigna. A entrega fere a virtude. “Paixão”, tem em latim, passio, o mesmo radical de “passivo” – apaixonar-se é ter a alma passiva, é submeter-se, é estar rendido.
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Porém, ah!... Se o pudesse... Teria alongado todas as noites para continuar a seu pé, ou no seu regaço. Diria mesmo que é bom estar rendido. E que não importa quantos quilômetros ou séculos nos separem – ainda assim seria o pequeno, coração, amante de sempre.
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Parece irracional. É mesmo. Pois amar é mesmo seguir a lógica do ilógico. Assim, por exemplo, o jovem amigo, diante de Diadorim, descobrindo o amor:
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quase que a gente não abria a boca; mas era um delém que me tirava para ele – o irremediável extenso da vida. O corpo não traslada, mas muito sabe, advinha se não entende. Perto de muita água, tudo é feliz.
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Tudo é feliz. Não é preciso entender nada, advinha-se.
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A realidade presente faz acreditar que a felicidade é possível, faz pensar que esse sonho do espírito humano é palatável, tangível, palpável, é material. É quase possível tocar o amor. Seu registro deixa marcas em nosso corpo, deixa vestígios em nossa alma – dele não é possível sair incólume, não é possível abster-se, é o irremediável extenso da vida.
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A vida extensa, de encontros e desencontros, de dias que findam e noites que terminam, anuncia os tempos que serão de saudade, dias de lembrança e espera. Sim, fosse um deus, faria tudo para alongar os dias e as noites, para sentir-me indefinivelmente contigo.
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Ainda com Rosa, o real não está na saída, nem na chegada. Ele se dispõe para gente é no meio da travessia.
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Nessa travessia, nela compartilho longos trechos contigo, por ela é preciso dizer que as saudades anunciadas serão ainda pequenas diante dessa imensa neblina em que minhas emoções se afogam.
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Amor vem de amor, Diadorim é minha neblina.

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Júpiter e Juno (Caramacci, 1560-1609)

Segundo a lenda, narrada por Plauto (séc. III a.C.), Júpiter teria se disfarçado de um general romano, em batalha, Anfitrião, e passado três noites com ela, na posição de seu marido. Como resultado, Alcmena ficou grávida de Hércules.