quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Carta a um ex-esperantista

O texto a seguir é a publicação ipsis litteris de uma carta enviada por mim a certo esperantista que decidiu abandonar o estudo e o cultivo da lingvo internacia, desolado diante das frustações que argumentava que o Esperanto trazia diante da promoção da paz.
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Onde houver reflexão acerca das línguas que encerrem consigo um ideal - quer seja de legitimidade religiosa, como o latim, quer seja de unificação de um povo, como o hebraico moderno, quer seja de neutralidade e unificação transnacional, como o Esperanto - aí haverá dissonâncias e intensa polêmica. É por esse motivo que, em pouco mais de cem anos de existência do Esperanto, não foram poucos aqueles que se armaram com argumentos científicos, políticos ou mesmo religiosos desfavoráveis ao Esperanto sem conhecê-lo, e também não foram poucos aqueles que conhecendo-o de perto logo se desmotivaram a continuar o seu cultivo.

Esses primeiros, a meu ver, não merecem nossa consideração aqui, por se basearem apenas em preconceitos e não terem, de fato, um conhecimento de causa que torne legítima a argumentação. Já os segundos, que, com justo motivo, decidem abandonar o movimento, estes, sim, merecem a nossa atenção. É por isso que tomo a liberdade de te escrever.

Concordo plenamente que o Esperanto não resolveu e não resolverá os conflitos humanos, porque eles se assentam mesmo na idéia de diversidade e jamais haverá duas criaturas - ainda que nasçam no mesmo berço ou falem a mesma língua, que sejam iguais. A idéia interna por que os esperantistas costumam lutar não se trata de uma postura talvez um tanto ingênua de que se falarmos uma língua politica e culturalmente neutra será o suficiente para dirimir as mazelas que separam os povos, que ferem as culturas e as dizimam sob o peso das armas e das riquezas.

Como lingüista, sou forçado a reconhecer que o Esperanto representa uma, e apenas uma, língua, no vasto espectro das linguagens humanas. Cada língua com sua cultura representa um recorte sempre único de se entender e construir o mundo, e, por isso, nem o Esperanto, nem outra língua qualquer, possui o privilégio de ser visto como melhor que nenhuma outra. Por outro lado, é preciso também reconhecer que o Esperanto representa um movimento cultural sem precedentes, pois inaugura um fenômeno cultural cujas fronteiras ultrapassam os limites territoriais dos países, causa estranhamento àquelas pessoas somente arraigadas aos valores de sua terra, amplia os horizontes de percepção e - porque não? - compreensão da diversidade humana. É verdade que no Brasil talvez a maior parte dos Esperantistas sejam aqueles que se afinizem com este ou aquele credo religioso, e, em nome dessa crença, abracem também o Esperanto. Mas reconhecendo que a essência do Esperanto é exatamente não pertencer a ninguém e a todos - ainda que o paradoxo pareça já gasto - é justo aceitarmos que demonstrar as suas preferências, seus modos de agir e pensar, e também as suas discordâncias a esse respeito, não somente é legítimo - posto que humano - mas, sobretudo, é apanágio das linguagens humanas, definem a sua essência. De outra forma, o Esperanto não poderia ser considerado sequer uma língua.

Ademais, penso, na limitação das minhas opiniões, que a paz não é fruto da uniformidade - que, poderíamos pensar, seria a solução do problema de Babel - mas é filha do reconhecimento e respeito mútuo das diferenças. É resultado, exatamente, desse diálogo, desse sincretismo que, especialmente no Brasil, é sempre tão presente em nosso dia-a-dia. A paz não seria alcançada pelo privilégio concedido a uma única língua, a uma 'supralíngua', como seria pensado na opinião dos Esperantistas mais idealistas, mas nas pequenas, mas efetivas contribuições que cada ser humano, falando em suas próprias línguas, ou confraternizando-se entre si pelo Esperanto (ou não), dão às suas esferas de ação a cada dia. O Esperanto é um movimento cultural, transnacional, sim, mas humano. É uma possibilidade de atuarmos para a paz, como todas as outras línguas também o são. Depende somente dos esperantistas.