terça-feira, 29 de julho de 2008

Ensaio sobre o amor no mundo moderno

...Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis; nada menos. Meu pai, logo que teve aragem dos onze contos, sobressaltou-se deveras; achou que o caso excedia as raias de um capricho juvenil.

Machado de Assis. Memórias Póstumas de Brás Cubas.


Nunca tivemos tanta liberdade quanto a que temos nos dias de hoje. Liberdade individual, de ir e agir, de viver cada um à sua maneira, de levar a vida como entende, sem ser restringido por discurso cerceador ou moralizante de nenhuma sorte, sob pena de poder-se sempre processar quem quer que seja que intervenha contra a nossa sagrada, custosamente adquirida, liberdade.

Fugindo das amarras das convenções, dos grilhões da história, do preconceito e dos atavismos, conseguimos, enfim, possuir, pelo menos em tese, pelo menos na lei, a liberdade que desejamos, aquela boa e necessária possibilidade de sermos senhores do nosso destino e fazermos da nossa vida aquilo que bem entendemos.

O grande paradoxo é que, diante desse bem precioso que é a liberdade, o sofrimento continua a dar as caras em todas as suas cores diante de nós e também dentro de nós. Basta olhar de relance à nossa volta: vivemos em uma sociedade doente do sentimento. Desconsiderando a expressão superficial e exterior das agressões entre os indivíduos, na intimidade de cada um persiste a insegurança e o medo, a sensação de traição e abandono, a mágoa e o remorso, o desânimo e a desilusão, a raiva e a impaciência, a tristeza e o desencanto... Seria demais enumerar todas os sintomas da sociedade do desamor.

Tragicamente, o sonho do amor perfeito parece ter mesmo sido sepultado com Romeu e Julieta em seu sonho na juventude. Na sociedade movida a aparências de felicidade, nas cores inebriantes da moda e à luz da lei do mais rico, impera o pragmatismo das relações fortuitas e casuais, dos encontros impelidos pelos apelos do corpo, da pouca, quase nenhuma, possibilidade de doação e entrega real. Não temos tempo de esperar o tempo do outro, a vida é rápida e é preciso pensar em nossa própria satisfação em primeiro lugar. Isso é o que chamamos de gostar de si.

E assim os consultórios psicanalíticos, que à época de Freud curavam criaturas castradas e reprimidas, recalcadas e neuróticas, hoje trata doentes vitimados pela liberdade em excesso, por terem se permitido ferir-se e ferir outros, na busca exclusiva do amor a si, que nem merece esse nome, senão outro, egoísmo, a expressão crua e dura, humana, do ego sobre todas as aspirações que poderiam um dia ser realmente superiores.

É a sociedade frenética, o vai-e-vem, a velocidade dos encontros e desencontros em chats, em baladas animadas e entorpecidas, com muita música, muito som, muita bebida, muito glamour, mas sem nenhum amor. Alegrias que duram a dose de um energético (com ou sem adicionais).

Nessa sociedade, estamos, de fato, construindo uma moral compatível com nosso mundo, uma moral elástica, industrializada, de papel. A nossa moral permite-nos usar as palavras como queremos, esvaziando os seus significados. “Eu te amo” não tem mais o peso e o valor que um dia já teve, pois às belas palavras, não se somam mais a força das condutas, falamos, falamos, pobres daqueles que ainda acreditam. Estamos mesmo na sociedade da propaganda, das palavras vazias e inúteis, do "te amo" sem cor, sem emoção, sem sentimento. É a nossa campanha de marketing.

Pois, na verdade, o capitalismo pós-industrial inaugurou nos tempos modernos também a lei da barganha de sentimentos: migalhas de atenção aqui compram o interesse dali, ou então a sessão de cinema que acaba saindo de graça ou então, quem sabe, aquele presente que sempre quis ganhar. Compramos os sentimentos, pagamos o seu preço, mas também colocamos muito de nós à venda. Queiramos ou não, vendemos e negociamos: o que temos e o que não temos, o nosso tempo, a nossa atenção, a nossa vida, a nossa casa, a nossa saúde, o nosso planeta, até mesmo a nossa liberdade. No final da negociata, ainda estamos insatisfeitos, uma sensação de vazio, e de que alguma coisa não saiu bem permanece, em casos extremos, leva a atitudes igualmente extremas.

A conclusão, em suma, é que os sentimentos que temos, não vão além das impressões mais superficiais, e, por conta disso, em que pese também a irrefreável necessidade de olharmos para nós mesmos somente, somos construtores recíprocos da nossa desilusão amorosa. Chamamos de amor a presença de tudo, menos Amor, em nossas relações.

No final de contas, o saldo final não parece ser ainda satisfatório, vivemos a vida pelo prazer, mas não encontramos o prazer simples de viver a vida. Quisemos demais ser amados e não amamos. De fato, nunca tivemos mesmo o Amor, pois o amor que temos é o amor que damos.

Ah... o Amor.

Ainda que eu falasse a língua dos homens e dos anjos, mas não tivesse amor, eu seria como o bronze que soa ou um címbalo que retine. Se eu tivesse o dom da professia, se conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, se tivesse toda a fé, a fim de remover montanhas, mas não tivesse amor, eu nada seria. O amor é paciente, é benfazejo; não é presunçoso, nem se incha de orgulho; não faz nada vergonhoso, não é interesseiro, não se encoleiriza, não leva em conta o mal sofrido. Ele desculpa tudo, crê em tudo, espera tudo, suporta tudo.
(I Coríntios 13)



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POST SCRIPTVM - em março de 2009.
Uma leitora me escreveu uma carta, considerando aspectos do meu texto que estariam banalizando o discurso psicanalítico. Ainda que isso parece algo de um 'benevolentiae captatio': afirmo que os textos do 'Cup of Tea' não guardam pretensões científicas, não são tratados sobre quaisquer assuntos que abordam. O discurso psicanalítico - assim como tantos outros discursos que participam da nossa cultura - faz parte de um senso comum, ainda que dele produza simulacros, em que outros discursos se produzem. É desse senso comum que parto, ao usar os termos psicanalíticos em questão.
Para fazer justiça ao comentário gentil da leitora, reproduzo, abaixo, suas palavras ipsis verbis, para apreciação dos outros leitores.
Um grande abraço!
"Na realidade, na época de Freud, assim como hj, não trabalhamos com o conceito de cura, mas com o de qualidade de vida. Sobre "castradas, reprimidas e neuróticas", com, angústia de castração todos passamos por ela. A repressão e o recalque são mecanismos de defesa e, sem eles, estaríamos na barbárie. Sobre neurose, quem não é neurótico é psicótico e a diferença entre o normal e o patológico é quantitativa e não qualitativa.
Sobre o egoísmo como função egóica, é um pouco mais complicado por envolver conceitos como narcisismo primário e secundário.É claro que somos atravessados pela cultura, mas a dinâmica e a economia psíquicas são as mesmas em quaisquer época ou cultura.Sabe, Fábio, muito tem sido discutido no meio psicanalítico sobre a banalização da psicanálise e sempre concluímos que nós, psicanalistas, temos nossa responsabilidade nisto por nos omitirmos narcisicamente usando como justificativa que nosso conhecimento basta a nós."

domingo, 6 de julho de 2008

Relato de viagem

Quare id faciam, nescio. Sed fieri sentio.

“A vida é a arte do encontro...”, a frase ali estampada naquele cartaz, enquanto refletia comigo: ali me encontrava, novamente com malas na mão, registrando o frio do vento, a brisa do mar e coração aos saltos diante daquela ocasião.

Manhã movimentada, transeuntes iam e vinham de lugares distantes, tudo normal naquele aeroporto. Os aviões saindo de Vitória traziam-me idéias poéticas. Impressões ainda vivas dos últimos dias, dos trânsitos e praias, das ansiedades e, finalmente, dos resultados que, de certa maneira, obrigavam-me a redefinir planos e aspirações para o porvir.

Uma sensaçao de tristeza e alegria me contemplava simultaneamente naquele momento, meu pensamento, usualmente dado a idéias viajantes, me sugeria agora pé no chão, nada mais apropriado do que isso para quem estava prestes a voar.

Aquela manhã era estranha, observando naves que pousavam estrondosamente e levantavam vôo em direção ao nublado céu, oh, Deus, o horizonte infinito comporta os sonhos a que aspiro?

Diante de todos, eu era apenas silêncio, nenhuma palavra calmamente pronunciada fazia alarde da minha origem, enquanto, nas minhas lembranças, apenas gratidão, nada mais. Revivia os últimos dias, como, de certa maneira, tinham sido um evento marcante na minha vida, mas sobretudo, a oportunidade que, enfim, foi possível de ver o litoral capixaba por outros ângulos, na praia vazia da tarde fria ou mesmo do alto da construção multissecular, onde, por um algum instante, meus olhos se voltaram, finalmente, para mais perto de Deus: muito obrigado!

Como era bom, sentir, novamente, a presença daquele Deus que tanto sentido tinha dado a boa parte da minha vida, mas cujo hálito havia bastante tempo não mais sentia. A respiração de Deus deveria mesmo ser como aquela visão no alto do convento da penha: tocada pelos brilhos refletidos do sol na superfície do mar, em silêncio e respeito circunstante, vento calmo e nada mais.

Subitamente, lembrei-me de dias atrás, da longa caminhada ao longo da costa, na tarde que revolvia as ondas do oceano e despedindo-se do sol, exemplificava a renovação do dia.

Bem se percebia que, se eu era tipicamente um mineiro revisitando as praias do Espírito Santo, também ela era uma viajante em terras estrangeiras. Vinha do norte, da terra das pessoas de bom coração, da terra das pessoas generosas. Assim era ela, minha então mais nova amiga, embora uma sensação me dissesse ser amiga de outros tempos, de outras vidas, nunca sabemos, enfim, quando encontros são, na verdade, reencontros.

“A vida é a arte do encontro...”

Aqui estava eu, de volta a minha casa, igualmente em terra forasteira, depois desses dias. Como era rápida a viagem de volta, o retorno à vida de antes e a redefinição dos meus planos. Como as coisas mais significativas da vida, aquelas lembranças de amizade tinham sido como um grande presente inesperado, daqueles que sempre quisemos ganhar e jamais tínhamos a oportunidade.

Aqui estava eu, sentado diante do cartaz da frase anônima, escrita em amarelo-ouro sobre azul-mar, era o próprio reflexo daquele sol do alto do convento. Aquela frase, sem autoria e referências no cartaz, descobriria tempos depois ser o primeiro verso do poema-canção de Vinícius de Morais, cuja oportunidade me obriga a publicá-lo:


“A vida é arte do encontro
Embora haja tanto desencontro pela vida
Há sempre alguém à sua espera
Com os olhos cheios de carinho”


Obrigado, Cláudia, pelos seus olhos de carinho plenos, que me provaram que, apesar dos desencontros da estrada, ainda é possível encontrar um coração generoso a nossa espera.