sábado, 1 de dezembro de 2007

Para que estudar latim?

Amar o perdido
deixa confundido
este coração.


Carlos Drummond de Andrade





Reencontrei hoje um verso que me impressionou na primeira vez que o vi, é o verso 69 da Écloga X de Virgílio: "O amor vence todas as coisas, também nós rendamo-nos ao amor" (Omnia vincit amor, et nos cedamus amori).

Uma frase, como diria um professor, lapidar na sua expressão latina, há bem mais de dois milênios escrita e que, ainda hoje, veicula o frescor dos sentimentos humanos, na sua expressão mais humana e profunda: é impossível levar a vida ileso ao amor.

Por menos apaixonada que esteja a personalidade de quem a leia, não deixa de causar certa comoção, ou mesmo, no mínimo, algum espanto.

Afinal, como os romanos, aqueles sanguinários gladiadores dos filmes de Hollywood, poderiam, àquela época de, por assim dizer, tão poucas luzes, fazer um apelo dessa natureza a um sentimento que hoje nós aprendemos a considerar tão nobre: o amor?

Em outra máxima, Catulo, poeta também do século I a.C, diria àqueles que sofrem por esse sentimento, sobre o qüão "difícil é deixar repentinamente um longo amor" (Difficile est longum subito amorem deponere).

Tais versos parecem trazer a tona sentimentos de uma era em que as pessoas não somente eram capazes de "se render ao amor", como também pareciam não suportar a dor imensa de "deixar sem mais" um longo e terno sentimento. Um tempo, por assim dizer, diferente do nosso, mas que, por mais diversas que fossem as condições de vida em que estavam as criaturas, representava aquilo que elas tinham em comum conosco nos dias atuais, aquilo que, no mínimo, ainda nos identifica: a nossa humanidade.

Afinal, oque de tão semelhante seriam aqueles versos de Catulo, com esses de Drummond (o bom Drummond dos mineiros, já na Itabira do século XX!):


"Amar o perdido

deixa confundido

este coração.



Nada pode o olvido

contra o sem sentido

apelo do Não.



As coisas tangíveis

tornam-se insensíveis

à palma da mão


Mas as coisas findas

muito mais que lindas,

essas ficarão."


Como nos lembra São Jerônimo, na sua tradução dos Eclesiastes: "Nada de novo sob o sol" (Nihil sub sole novum). Talvez exista mesmo algo de permanente em nossa condição humana, algo que perpassa os tempos e as condições, algo que nos una e nos identifique. Todas essas coisas ficam registradas pelas palavras, essas de agora e aquelas de ontem. Para que aquelas de outrora não se percam no silêncio do esquecimento, talvez precisemos sempre de um pouco de latim.


***


Dedico à Michelle Sabbagh Carneiro


Querida e terna amiga, saudades!

segunda-feira, 30 de julho de 2007

Encontros & desencontros

"Não me arrependo do que fui outrora
Por que ainda o sou"
Alberto Caeiro



Naquele dia, o frio era particularmente incômodo para todos ali, também para ele.
Ainda que não fosse aquela sensação estranha, haveria ainda a constatação de que, porque ele, ele, tão comum, se furtaria a sofrer também? Era humano sofrer por alguém em quem se deposita as suas esperanças. Os seus sonhos de ter uma vida plena. Tal qual parecia-lhe ser direito de todos.

Aquela ausência nos dias que passaram, os telefones que não foram atendidos, aquela sensação de abandono. Angústia miúda, até então escondida, e a lágrima quente, que teimava em descer pela sua face. Ele tinha 21 anos. Pela primeira vez, acreditava, enfim participava daquele mais alegre e colorido lado do mundo: o lado dos que amam.

"É preciso amar até doer!" Talvez, finalmente, lhe fizessem sentido aquelas palvras antes ouvidas, não compreendidas. No entanto, a esperança, como frágil chama naquele dia frio, parecia renascer. De qualquer forma, teria ele feito tudo por aquele reencontro. Por aquela voz do outro lado da linha.

Mas, a tarde passou célere com a carruagem do tempo. Com ela, primeiro, a esperança; depois, a frustração.
.
"É preciso amar até doer..."
Todos iam e vinham no ambiente frio e impessoal do shopping. E quem muito era esperado não veio. Ainda uma vez. E não mais viria. O frio era particularmente incômodo pra todos ali.
***
O carnaval é celebrado como a festa da alegria. Os amigos saem com os amigos. Outros vão às ruas para se lembrar de seu tempo de juventude, outros para esquecer os seus dias.

Essa era a época em que apresentava sua peça de teatro. Atrás das cortinas, naquele tablado escuro, ali esperava. Entre a ansiedade e as preocupações circundantes, esperava. De todos os convites dados, nenhum tinha sido entregue com mais esperança. Para ninguém mais aquele convite teria sido tão especial.

Cordélia era aquela que amava, entre todos os netos e filhos e sogras. Cordélia amava. Assim tinha aprendido nas aulas de literatura, daquele conto da Clarice Lispector. O deslocamento daquela concepção banalizada de amor, tão trivial nos dias atuais, tão diferente daquela sensação de felicidade que vinha com aquele sorriso que, pela primeira vez, acenou-lhe no horizonte, pela primeira vez, havia já alguns meses.

Aquele sorriso que ainda não saía do seu pensamento. Aquele sorriso que, até no último dia, tinha lhe abraçado. O sorriso para quem iam os barquinhos de papel, cuidadosamente dobrados. O sorriso que lhe fizera entregar pessoalmente aquele convite e esperar. Entre as cortinas, atrás do tablado. Na noite especial do sábado de carnaval.

Um frio na barriga, não saber direito que palavras escolher, sentir pulsar o coração: no teatro, como na vida, assim era estar apaixonado. Por que não esquecia aqueles olhos que pareciam fugir quando examinados de perto?

Como querer carregar o mundo, assim era estar apaixonado. Como pensar ser capaz de fazer tudo, de ser feliz. Era preciso fazer-se de forte, ocultar fragilidades, chorar olhando o horizonte, ter ninguém a não ser os amigos mais próximos, só mesmo aqueles que também sabem o qüão difícil é deixar de amar. Difficile est longum subito amorem deponere.

Para responder ao seu amor, era preciso responder àquele convite. Ali estavam todos: menos aquele dos olhos fugidios.

***

ARTE: "Angústia" - David Siqueiros - Coleção particular do MASP

quarta-feira, 4 de julho de 2007

Um dia qualquer

Lembro-me de quando eu era criança e via como hoje não posso ver, a manhã raiar sobre a cidade. Ela não raiava para mim, mas para a vida. Por que então, eu, não sendo consciente, eu era a vida? Eu via a manhã e tinha alegria. Hoje vejo a manhã, tenho alegria e fico triste. O verde das árvores é velho e as flores são murchas, antes de aparecidas.
O Livro do Desassossego. F. Pessoa



Quanto vale um sorriso? Um dia me questiono quanto tempo existe no tempo que passa, quanta luz existe no sol que amanhece, quanto calor existe no abraço inesperado. Um dia acordo e o sol reluta em entrar no quarto e o verde das árvores deixa de ser verde, por tão verde ser.

Um dia me questiono quanta dor existe na mãe que chora, na criança que cai, na decepção que se apresenta, nos olhos que se calam, nas pessoas que se afastam. Acordo e medito a brevidade do tempo e o valor do passado, e observo a poeira caindo, as pessoas andando, o dia correndo. A vida, enfim, prosseguindo. Olho nos olhos de quem passa, o vento bate no meu rosto, e em meio ao tráfego, sinto o silêncio. Profundo silêncio que, como é normal, devotamos aos desconhecidos, em meio à multidão.

Estamos irremediavelmente unidos e separados pela mesma humanidade.

Um dia me questiono se existe algo indefinivelmente essencial dentro de mim e me apego à impressão de que é preciso que exista para que eu seja, para sobreviver. Quanto vale um sorriso?
***
ARTE: "Manhã" - Edvard Munch

domingo, 1 de julho de 2007

An English message

" I remember one morning getting up at dawn, there was such a sense of possibility. You know, that feeling? And I remember thinking to myself: So, this is the beginning of happiness. This is where it starts. And of course there will always be more. It never occurred to me it wasn't the beginning. It was happiness. It was the moment."

Clarissa Vaughan. The Hours



When we have much to talk about an issue, it's common to lose the ability to say anything. To say the least, I have no idea on what to begin. Let's say I'd already written some words a couple of years ago, trying to deepen the nature of my feelings and understand the basic meanings of what was going on.

Moved by the same spirit, I try to write this letter now, with no real reader in fact. Maybe I should confess I have no real ideal of understanding anymore. At that time, I couldn't understand, but I tried to give some sense to life. Now, I simply can't understand. And that's all. Living is far more complex than reason. There are a certain number of things unvulnerable to explanation. Let's say, for instance, love.

Wasn't the mean price for love blindness, things would be much easier, I guess. However, how to overcome this? It's something we get used to living with, to say the truth, we usually forget the meaning of vision.

I have experienced this and, as everybody on Earth, suffered from this. It's been a hard time to understand these strong feelings inside myself. Oh, Gosh, make me believe in understanding again, then help me find this.

***

ARTE: "Mulher de cabelos amarelos" - Pablo Picasso

segunda-feira, 16 de abril de 2007

What's your cup of tea?

Existem palavras que jamais deixam a nossa memória, e estão sempre voltando à tona com outros matizes, nas cores temperadas pela experiência. Bem antes de me tornar professor, já me fascinava a forma como as línguas marcam o território da diferença e da identidade.
Certa vez, cansado depois de um dia, observava as pessoas dentro do ônibus que me levava pra casa, quando não tive como deixar de ouvir o diálogo entre a menininha, que devia ter uns três anos, e aquele que presumi ser o seu avô.
Por mais que o mundo ali circundante àquela pequena cena familiar fosse absolutamente opaco para a maioria das pessoas, ali já calejadas com as voltas dos ônibus, no vai-e-vem frenético e sempre mecanizante da vida, aquela menina observava. Para todos ali o mundo era já grosseiramente comum e trivial, suas peculiaridades já se perdiam em meio à trivialidade dos pensamentos. Não para aquela menina.
No olhar dela ainda havia aquela curiosidade original diante do mundo, um senso indagador e inquieto diante das coisas.

Na frenagem abrupta do veículo, a menina curiosa observa - os pássaros ciscando o chão - e então eles alçam vôo, "Olha! A pomba vua! Vua!"
Não pude me furtar a olhar de relance aquele senhor, cujo semblante, que, havia muito, talvez já não tivesse a atenção das pessoas queridas, ali regozijava em ter toda a atenção daquela criança. Parecia-lhe que, no crepúsculo da vida, malgrado o que todos deveriam sugerir-lhe através de olhares silenciosos e de perguntas mal-respondidas, parecia-lhe que tinha vida. E, por amor mesmo àquela vida, que então lhe igualava à outra criatura no seu colo, o olhar se detinha na cena dos pássaros atravessando o céu.
"Não é 'vua', minha filha", disse-lhe, ainda que aquelas palavras fossem insuficientes para ensinar à criança o que lhe passara pelo íntimo naquele instante: a essência da vida. As duas pontas machadianas - a meninice e a senectude - numa mera questão de linguagem, que, paradoxalmente, separavam-nos e os uniam. "É 'avoa'. A pomba avoa". Disse-lhe afinal.

Não existe ensinamento que resista mais ao tempo quanto aquele. A constatação mais superficial, ja seria bela em si - a diversidade lingüística. A segunda conduz-nos a outro tipo de reflexão um quanto mais profunda.

My cup of tea
é a expressão inglesa para tudo aquilo que nos comove e nos encanta em nossa experiência. É uma expressão de que gosto e que utilizei para dar nome a esse blog. Não somente as línguas e suas expressões separadas no tempo constituem o objeto de minhas mais caras procupações intelectuais, como pareceria supor. Na língua mostramos que somos diferentes e iguais. Mas não somente. Somos, principalmente, humanos. Também me encanta a forma como os seres humanos lidam com os seres humanos.

terça-feira, 3 de abril de 2007

Sobre correntes e música

Saudade é um pouco como música. Os sons participam do nosso universo agora, nos encantam com formas diferentes e novas de sentir o belo, depois vão sendo esquecidos devagarinho, vão sendo deixados de lado, em favor de outros sons.

Quando ouvi pela primeira vez a trilha sonora de Amèlie Poulain foi como ter silenciado profundamente dentro de mim um grito contido, uma dor não revelada. Mais uma daquelas pesadas correntes arrastadas pelo mundo pelas pessoas: umas passam sobre as outras, cada uma nota apenas da sua – a notável e singular capacidade humana de somente olhar em direção a si e, paradoxalmente, ainda não se ver.

O fato é que, somente bem depois, com o amadurecer do tempo, fui aprendendo que tais correntes não se arrebentam: se desatam. Pura e simplesmente. Há uma diferença entre desatar e destruir – o primeiro depende de nosso esforço paciente e sereno, o segundo, de um arroubo de desespero. O desespero é irmão da loucura; a serenidade é filha da paz.

Algum tempo depois, simplesmente desistimos de olhar o chão, e notar o peso do que trazemos, fitamos o horizonte e toda a beleza que ele nos traz. As pessoas a nossa volta. Algumas ainda se detêm no lamento agudo de suas tristezas, outras já olhavam em nossa direção e esperavam a oportunidade de revelarem-nos o segredo de nossa corrente. A diversidade de seres e situações nos inspira sempre admiração e a sensação de participar de um todo, indefinivelmente maior e mais belo; de um todo que nos faz, novamente, lembrar de Deus.

A simplicidade e exatidão da natureza não nos cansam de exemplificar a solução das coisas: tudo tem seu tempo. Como a folha que cai e prepara o solo para o nascer de outras plantas, como a semente que espera o tempo propício de germinar. Assim também ocorre com nossa parcela de culpa e tristeza, com os gritos e lamentos que emitimos dentro de nós. No tempo certo, deles nos libertaremos, como a corrente que decidimos desatar por vontade própria, depois do tempo exato para aprender o que significa ser livre.
No tempo certo, resta apenas a lembrança. Do passado, uma saudade, cândida e jovem como Amèlie Poulain. Aos poucos, outros sons poderão ocupar o presente, mas, com certeza, nunca apagar completamente aquela música. Pois mesmo que um dia deixe de sentir os sons do passado, ainda sim eles terão deixado sua marca dentro de mim.