segunda-feira, 16 de abril de 2007

What's your cup of tea?

Existem palavras que jamais deixam a nossa memória, e estão sempre voltando à tona com outros matizes, nas cores temperadas pela experiência. Bem antes de me tornar professor, já me fascinava a forma como as línguas marcam o território da diferença e da identidade.
Certa vez, cansado depois de um dia, observava as pessoas dentro do ônibus que me levava pra casa, quando não tive como deixar de ouvir o diálogo entre a menininha, que devia ter uns três anos, e aquele que presumi ser o seu avô.
Por mais que o mundo ali circundante àquela pequena cena familiar fosse absolutamente opaco para a maioria das pessoas, ali já calejadas com as voltas dos ônibus, no vai-e-vem frenético e sempre mecanizante da vida, aquela menina observava. Para todos ali o mundo era já grosseiramente comum e trivial, suas peculiaridades já se perdiam em meio à trivialidade dos pensamentos. Não para aquela menina.
No olhar dela ainda havia aquela curiosidade original diante do mundo, um senso indagador e inquieto diante das coisas.

Na frenagem abrupta do veículo, a menina curiosa observa - os pássaros ciscando o chão - e então eles alçam vôo, "Olha! A pomba vua! Vua!"
Não pude me furtar a olhar de relance aquele senhor, cujo semblante, que, havia muito, talvez já não tivesse a atenção das pessoas queridas, ali regozijava em ter toda a atenção daquela criança. Parecia-lhe que, no crepúsculo da vida, malgrado o que todos deveriam sugerir-lhe através de olhares silenciosos e de perguntas mal-respondidas, parecia-lhe que tinha vida. E, por amor mesmo àquela vida, que então lhe igualava à outra criatura no seu colo, o olhar se detinha na cena dos pássaros atravessando o céu.
"Não é 'vua', minha filha", disse-lhe, ainda que aquelas palavras fossem insuficientes para ensinar à criança o que lhe passara pelo íntimo naquele instante: a essência da vida. As duas pontas machadianas - a meninice e a senectude - numa mera questão de linguagem, que, paradoxalmente, separavam-nos e os uniam. "É 'avoa'. A pomba avoa". Disse-lhe afinal.

Não existe ensinamento que resista mais ao tempo quanto aquele. A constatação mais superficial, ja seria bela em si - a diversidade lingüística. A segunda conduz-nos a outro tipo de reflexão um quanto mais profunda.

My cup of tea
é a expressão inglesa para tudo aquilo que nos comove e nos encanta em nossa experiência. É uma expressão de que gosto e que utilizei para dar nome a esse blog. Não somente as línguas e suas expressões separadas no tempo constituem o objeto de minhas mais caras procupações intelectuais, como pareceria supor. Na língua mostramos que somos diferentes e iguais. Mas não somente. Somos, principalmente, humanos. Também me encanta a forma como os seres humanos lidam com os seres humanos.

terça-feira, 3 de abril de 2007

Sobre correntes e música

Saudade é um pouco como música. Os sons participam do nosso universo agora, nos encantam com formas diferentes e novas de sentir o belo, depois vão sendo esquecidos devagarinho, vão sendo deixados de lado, em favor de outros sons.

Quando ouvi pela primeira vez a trilha sonora de Amèlie Poulain foi como ter silenciado profundamente dentro de mim um grito contido, uma dor não revelada. Mais uma daquelas pesadas correntes arrastadas pelo mundo pelas pessoas: umas passam sobre as outras, cada uma nota apenas da sua – a notável e singular capacidade humana de somente olhar em direção a si e, paradoxalmente, ainda não se ver.

O fato é que, somente bem depois, com o amadurecer do tempo, fui aprendendo que tais correntes não se arrebentam: se desatam. Pura e simplesmente. Há uma diferença entre desatar e destruir – o primeiro depende de nosso esforço paciente e sereno, o segundo, de um arroubo de desespero. O desespero é irmão da loucura; a serenidade é filha da paz.

Algum tempo depois, simplesmente desistimos de olhar o chão, e notar o peso do que trazemos, fitamos o horizonte e toda a beleza que ele nos traz. As pessoas a nossa volta. Algumas ainda se detêm no lamento agudo de suas tristezas, outras já olhavam em nossa direção e esperavam a oportunidade de revelarem-nos o segredo de nossa corrente. A diversidade de seres e situações nos inspira sempre admiração e a sensação de participar de um todo, indefinivelmente maior e mais belo; de um todo que nos faz, novamente, lembrar de Deus.

A simplicidade e exatidão da natureza não nos cansam de exemplificar a solução das coisas: tudo tem seu tempo. Como a folha que cai e prepara o solo para o nascer de outras plantas, como a semente que espera o tempo propício de germinar. Assim também ocorre com nossa parcela de culpa e tristeza, com os gritos e lamentos que emitimos dentro de nós. No tempo certo, deles nos libertaremos, como a corrente que decidimos desatar por vontade própria, depois do tempo exato para aprender o que significa ser livre.
No tempo certo, resta apenas a lembrança. Do passado, uma saudade, cândida e jovem como Amèlie Poulain. Aos poucos, outros sons poderão ocupar o presente, mas, com certeza, nunca apagar completamente aquela música. Pois mesmo que um dia deixe de sentir os sons do passado, ainda sim eles terão deixado sua marca dentro de mim.