quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

A cigana

Em resposta ao "Anjo triste".

“Água de coco!”

Sabe quando não pensamos em nada? Um amigo diria que é a única ocasião em que se pode pensar naquilo que somos e não somos, no presente e no futuro, nesses mistérios da vida em que o tempo, as preocupações do dia-a-dia e a mecanização do cotidiano nos fazem perder a capacidade de refletir.

Naquela tarde assim estava, como há muito tempo não fazia, embalado pela beleza daqueles pequeninos grãos de areia nos quais assentava meus pés, pequenos grãos daquela região que era conhecida pelo turismo gay da praia de Boa Viagem, em Recife.

Do ponto de vista de cada uma das pedrinhas douradas, em contraste com os últimos brilhos do sol no horizonte, o universo era realmente imenso, nem o marulho calmo, ou o vozerio das crianças que ainda brincavam ou dos vendedores de coco, bronzeadores, chapéus... – quantas coisas se podem vender hoje em dia! – eram suficientes para que meus olhos pousassem inquietos para essa realidade exuberante à volta e voltassem a fluir de forma trivial e comum, da forma banal como a vida adulta nos obriga a organizar todas as coisas da vida.

O inevitável era pensar que, apesar do cenário sob todos os aspectos paradisíaco e cheio de vida, daquela Recife que apenas conhecera na adolescência, pelos poemas de Manuel Bandeira ou por ser a terra da infância de Clarice, nessa mesma Recife dos prédios antigos, cordéis e dançarinos de frevo e maracatu – dos nadadores que desafiavam as placas que advertiam dos tubarões que passeavam pelas praias! –; nessa Recife, naquele dia, estava sozinho à praia, pensando em nada.

Recordava que, na adolescência, um dia considerei com meus amigos que o ano de 2010 era longínquo demais, que os caminhos da vida certamente nos levariam a cantos inimaginados e que teríamos a meta de nos reunirmos depois de dez anos. Ainda que dos detalhes sobrem pouco – como sempre, a nossa memória vai filtrando e apagando com o tempo a vivacidade das horas presentes, que passam a se enquadrar dentro de uma espécie de museu empoeirado e escondido lá nos recantos da nossa alma – ainda me lembrava do brilho que continha o nosso olhar, um brilho particular para a personalidade de cada um de nós, lá naquelas ruas mineiras, nas noites de sábado ou em outras noites.

Parecia que éramos bem mais velhos do que atualmente somos; a candura que era típica daquela juventude – de outras também? – nos legava um saber invulgar, posto que inconsciente, de entender que a vida é assim, um curso cuja destinação desconhecemos, ainda que dependa inteiramente e nada de nós – o primeiro dos muitos paradoxos com que seríamos formados ao longo desse curso.

Em que passagem desse trajeto transitariam, nesse instante, aqueles primeiros amores da adolescência?

Casmurro e inquieto, diria com Machado de Assis, ter naquela época cantado um duo terníssimo, das longas peregrinações ao meio dia, conversando sobre a mente e sobre o espírito, sobre o destino da humanidade e o nosso próprio, com meu mais jovem e belo amigo, dado a caminhadas exaustivas e sem fim, que eram longas e felizes ao seu lado. Depois um trio, com o assomo daqueles olhos latos e profundos, um dia considerados oblíquos, um dia considerados ciganos, em sua personalidade teatral e bela, da voz doce, das mãos e letras macias. Cantamos, ainda, depois, um quattuor, com aquele do qual éramos agregados em sua bela família, aquele que possuía o olhar arguto e a mente inquieta e que deixava pouco transparecer – a não ser em suas palavras escritas – seu humor inteligente e muitas vezes pessimista acerca da vida. Cantávamos, como crianças sem medo, construindo uma aventura que era sobretudo fantástica, mas que era essencialmente nossa.

De relance direciono meu olhar para um grupo de crianças distantes, são meninos descalços, afeitos às tardes recifenses, a esculpirem um castelo com os pequenos tijolos de areia da praia. Reconheço imediatamente que nelas ainda permanece algo de essencial que possuíamos, algo de profundamente humano e puro que trazíamos conosco. Esse era o elo mais forte que nos unia; reconheço nelas um pouco de nós, das crianças e jovens adolescentes que éramos, crescidos e criados no Colégio Militar.

Talvez, em instantes, os seus pais as levarão dali, para suas casas, onde ficarão provavelmente brincando em outras fantasias, sem pensarem demasiadamente na vida, sem se importarem com o dia de amanhã ou sem sofrerem pelo que ainda não existe. Amar é a terna inocência e a única inocência é não pensar!, repetia comigo as palavras com que me deliciara um dia nas tardes da adolescência, daquele que já era considerado o mestre dos heterônimos de Pessoa.

“Onde estão os meus amores da adolescência?”, repito, em semi-tom, conversando comigo mesmo, com o meu coração, como Ulisses, um dia fizera regressando para Ítaca.

“Eles ainda estão dentro de você!”
Vinha daquela voz falando ao meu lado, com a qual me assustava, com uma mulher vestida à moda cigana, pegando subitamente em minha mão.

A cigana que surge na praia é o eterno outro do qual fugimos: o lugar da diferença da qual nos escondemos e temos medo. Recife é uma cidade perigosa!, me disseram muitas vezes, não se pode confiar nas pessoas.

As rugas do rosto, a pele queimada pelo sol, as jóias pesadas e manchadas, o olhar metafísico e algo superior, como se fosse, enfim, capaz de enxergar coisas invisíveis, de penetrar um ambiente reservado a uns poucos, e dizer coisas sobre o presente e o futuro dos indivíduos.

Não estimo bem, mas aquela cigana velha me rendia: não sei por que comoção aceitei ouvir o que dizia ao ler as linhas da minha palma. Não se tratava de bruxa vulgar, como, afinal, às dezenas se assomam nesse período de carnaval, mas seu semblante ocultava algo de nobre que não conseguia disfarçar e algo de humano que sempre me comoveu, dos muitos lugares que passou, das muitas mãos que talvez teria lido, das emoções que um dia teria registrado nessa e nas outras praias onde, nômade, teria a vida lhe levado.

“Meu filho, o amor e a amizade, quando são sentimentos puros e verdadeiros, jamais se perdem. Um afeto que se distancia permanecerá ligado ao nosso coração se o dele também sentir por nós o amor que lhe dedicamos. Não chore, minha doce criança, perceba antes que o seu amor é grande e pode alcançar o coração do irmãozinho que se foi através dos atos de amor que realizar por outras criaturas.”

O amor que um dia fazemos nascer dentro de nós jamais se apaga; não é o tempo, a distância, as caminhadas que hoje são solitárias ou as risadas que já há muito se silenciam, nada disso é forte o suficiente para apagá-lo.

“Guarde consigo somente os momentos felizes e a imensa alegria que representou o seu amor por ele, na certeza de que foi tão bom para você, quanto para ele. O amor jamais se perde, meu pequenino, o amor jamais se perde...”

Olhando demasiadamente para o solo firme onde queremos pisar, muitas vezes esquecemos da abstração desse límpido céu que nos envolve: o céu é sempre o mesmo, está sobre mim e sobre todos aqueles que amamos e que continuam a fazer parte de nossa vida, no Brasil e fora dele, nessa vida ou em outras.

“Não tenha medo de amar novamente e não faça adormecer dentro de si o menino bom que era um dia, os sonhos que um dia lhe alimentaram a vida, e desenharam o seu horizonte. Persiga aqueles ideais, que são ainda os de hoje, e não se esconda para outros amores que também tornarão a sua vida mais bela a partir de agora. Talvez esse amor esteja esperando por ti aqui em Recife ou em outro lugar.”

Com aquelas palavras, a velha cigana se afastou, levando as poucas moedas que talvez tenha lhe dado, caminhando em direção àquele horizonte infinito, talvez ao encontro daqueles que ela amava e lhe esperavam naquela tarde.

Não consigo depreender ao certo de onde ela tenha vindo, se ela realmente tenha existido e me olhado profundamente dentro dos olhos, ou se ela era um sonho ou uma imagem. Sei que suas palavras estão agora comigo, me fazem novamente acreditar no amor, nessa emoção que aprendi a conhecer na adolescência, ao lado desses que hoje não estão exatamente aqui perto de mim.

A todos eles – Márcio, Juliana, Rafael – e depois tantos outros com que a vida me presenteou – seria injusto enumerar... – minha inteira gratidão, pelos momentos vividos e a certeza plena de que sempre valerão as palavras de ontem, onde quer que transitem as nossas emoções, pois onde depositamos o nosso tesouro, é aí que guardamos o nosso coração.

Com o ocaso do sol, bati a areia dos pés, sem pensar em nada, levantei-me e fui embora.