sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Anjos no Sertão

Este texto é uma homenagem:

a Maria de Lourdes e Roberta,

e - por elas -

a todos os meus amigos de

Serra Talhada.

Nos paralelepípedos das ruas, as chamas aquecem o coração dos homens. É sempre assim na noite sertaneja, quando se celebram a memória e o encanto de São João. Viva o costume centenário que teima em resistir nos recantos do mundo, viva a terra de gente valorosa e guerreira, terra de corações generosos, viva São João!


Meu olhar passa pelas luzes que encantam a noite, repousam nos paralelepípedos daquelas ruas e, de repente, se encanta de novo com os jovens, com os velhos, com as famílias em torno da fogueira. De repente, mira as montanhas no horizonte e se perde novamente no infinito, naquele recanto das emoções agora intangíveis, das memórias que persistem em perdurar, dos sonhos que seriam outros e não estes. Mas a noite continua, é noite de festa.


Recordo-me que conheci Pernambuco em um dia ensolarado, primeiro Recife e depois o sertão. Desbravando estradas longínquas, longe do mundo – perto das histórias que nunca se calaram, das tradições que nunca se perderam. Terra destes amigos, destes anjos que me acompanharam, me acolheram, cuidaram de mim, na minha estranheza de forasteiro. Terra de seres humanos que jamais me deixariam ao relento, à deriva. Terra de pessoas que sabem amar em silêncio. Sem palavras, os sertanejos são assim.


É o sertão que nos faz valentes, para então, aprender novamente a sentir: o calor das brasas, a devoção das fogueiras, a alma simples e devota. A crueza do sertão nos devolve os sentimentos. Tem uma beleza singular o olhar do menino que observa a flama que não se apaga. Até amanhã. Tem uma candura singular o casal que se aconchega em torno da fogueira depois de um dia cansativo. Neste momento, não há problema nenhum nesse mundo imenso, e se pode ser feliz. Até amanhã.


Muitas pessoas passaram pelo sertão. Trouxeram notícias de um mundo outro, levaram sua contribuição àquela parte do mundo que se diria esquecida nesse Brasil imenso. Mas, apesar disso, o sertão preexiste e continuará: inspirando pessoas, transformando criaturas, cuidando de seus filhos. Independentemente, o sertão resiste às suas agruras, resiste aos rótulos que lhe possam imputar, o sertão tem uma beleza infinita. Belo aos olhos do espírito, belo aos olhos do coração, capaz de ver as coisas invisíveis e essenciais. O milagre da natureza que renasce das cinzas. Como a fênix. O milagre do rio que nunca seca. O Velho Chico. O milagre daqueles que aprendem, desde cedo, a compartilhar o pouco do pão e ir à luta.


Não é sem pesar que deixo o sertão e volto para casa. Mas não é o retorno de um exílio. Retorno transformado e mais forte, volto um pouco sertanejo. Um pouco de mim será para sempre pernambucano. O encanto dessa serra me alimentou o espírito durante muito tempo, e a beleza dos falares será sempre filha da memória, a me fazer rememorar as tardes quentes e as noites belas, o luar de brilho nunca antes visto, e as amizades que perdurarão a despeito dos tempos, das distâncias e de tudo. Das noites solitárias na rede, às manhãs tranquilas. Dias que se seguiram com paciência e com fé. Volto para minha terra, das serras da caatinga, para as serras das gerais.


Ainda que meu olhar se perca nessas fogueiras de São João e me leve a sentir saudade, a perguntar dentro de mim – o horizonte infinito comporta os sonhos a que aspiro? Onde estarão os meus sonhos de antes, em busca dos quais acreditei ser preciso voltar? – as fogueiras me aquecem. É o calor das preces daqueles que amam de verdade.


De súbito, uma imagem me volta à memória: uma multidão mística em frente à Igreja matriz. É com essa imagem que ousaria, se um dia, me despedir. Uma devoção cândida de velhos, jovens e crianças que também entoavam, com suas mães, cantigas religiosas em homenagem à padroeira. Entre elas, vislumbro uma criança, uma menina pernambucana, olhos fixos na imagem, vela acesa na mão: nada é mais importante que aquilo. A cena me faz crer que um dia o mundo será também assim, límpido e puro como aquele olhar em prece: Penha, Penha, eu vim aqui me ajoelhar. Venha, venha, trazer paz para o meu lar.