terça-feira, 3 de abril de 2007

Sobre correntes e música

Saudade é um pouco como música. Os sons participam do nosso universo agora, nos encantam com formas diferentes e novas de sentir o belo, depois vão sendo esquecidos devagarinho, vão sendo deixados de lado, em favor de outros sons.

Quando ouvi pela primeira vez a trilha sonora de Amèlie Poulain foi como ter silenciado profundamente dentro de mim um grito contido, uma dor não revelada. Mais uma daquelas pesadas correntes arrastadas pelo mundo pelas pessoas: umas passam sobre as outras, cada uma nota apenas da sua – a notável e singular capacidade humana de somente olhar em direção a si e, paradoxalmente, ainda não se ver.

O fato é que, somente bem depois, com o amadurecer do tempo, fui aprendendo que tais correntes não se arrebentam: se desatam. Pura e simplesmente. Há uma diferença entre desatar e destruir – o primeiro depende de nosso esforço paciente e sereno, o segundo, de um arroubo de desespero. O desespero é irmão da loucura; a serenidade é filha da paz.

Algum tempo depois, simplesmente desistimos de olhar o chão, e notar o peso do que trazemos, fitamos o horizonte e toda a beleza que ele nos traz. As pessoas a nossa volta. Algumas ainda se detêm no lamento agudo de suas tristezas, outras já olhavam em nossa direção e esperavam a oportunidade de revelarem-nos o segredo de nossa corrente. A diversidade de seres e situações nos inspira sempre admiração e a sensação de participar de um todo, indefinivelmente maior e mais belo; de um todo que nos faz, novamente, lembrar de Deus.

A simplicidade e exatidão da natureza não nos cansam de exemplificar a solução das coisas: tudo tem seu tempo. Como a folha que cai e prepara o solo para o nascer de outras plantas, como a semente que espera o tempo propício de germinar. Assim também ocorre com nossa parcela de culpa e tristeza, com os gritos e lamentos que emitimos dentro de nós. No tempo certo, deles nos libertaremos, como a corrente que decidimos desatar por vontade própria, depois do tempo exato para aprender o que significa ser livre.
No tempo certo, resta apenas a lembrança. Do passado, uma saudade, cândida e jovem como Amèlie Poulain. Aos poucos, outros sons poderão ocupar o presente, mas, com certeza, nunca apagar completamente aquela música. Pois mesmo que um dia deixe de sentir os sons do passado, ainda sim eles terão deixado sua marca dentro de mim.

Um comentário:

Renato disse...

Belíssimo texto, caro.
Identifiquei-me bastante com ele. A música realmente se nos aparece assim: fluída e permanente. Um quê de material e espiritual. Tal qual o discurso se configura através de letras, palavras, frases e textos, do mesmo modo os sons da melodia se agrupam num compasso harmônico repleto de sifgnificados que nos marcam para sempre.
Se os ouvidos são os que sentem e até escolhem o ritmo da canção, é o coração que retém o seu conteúdo e imprime de sentimentos ali (re)(in)cobertos...