quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Parte 2: Espelho

O espelho reflecte certo, não erra porque não pensa.
Pensar é essencialmente errar.
Errar é estar essencialmente cego e surdo.
Alberto Caeiro, 01/10/1917.


O que operam 10 anos na vida de uma pessoa? É uma pergunta relativa: se for feita quando temos 50 anos, teremos uma resposta; mas aos 15, pode-se dizer que os dez anos seguintes definem, em grande parte, o resto da vida.

Dos 15 aos 25 decidimos o plano inicial da nossa jornada, consolidamos as nossas crenças ou as abandonamos; vencemos os nossos medos ou aprendemos a conviver com eles. Aos 25, podemos olhar para trás e dizer com alguma convicção: não sei o que sou.

O fato é que era bom estar de volta à minha cidade, como, aliás, o seria em qualquer ocasião em que retornasse aos meus. Uma grande ansiedade se mistura com a saudade quando estou de volta. É difícil não me surpreender com as pequenas mudanças que se alteraram nos quadros tão regulares à volta daqueles que permanecem. Aos olhos dos que foram, tudo é absolutamente novo.

Descendo as ruas molhadas e sorvendo o ar frio, seria possível sentir algum desconforto, mas as condições ambientais eram mínimas diante das revoluções que se passavam dentro do coração.

Aquela blusa azul que vestia sereno o jovem à frente, subitamente me conectava a outra dimensão: uma dimensão frequentemente ignorada, que é até difícil de definir, mas é absolutamente subjetiva e tem como marca dominante uma busca própria por entendimento de si mesmo.
Aos 25 anos, podemos olhar para trás. E dizer: não sei quem sou.

Quanto maior a proximidade, maior era a revelação das semelhanças no tipo físico que se destacavam entre mim e aquele jovem. Se fosse outra pessoa, diria ser meu irmão mais novo, alguns anos à frente.

Não sei como, e com tal surpresa, cheguei à inexorável conclusão. O jovem não era outra pessoa – era eu mesmo.

Aos 25 anos, tive a experiência, sem dúvida singular, de reencontrar não com alguém parecido comigo na adolescência, mas de me reencontrar no passado. Posso dizer, por maior estranhamento que provoque: eu estava diante de mim. O menino diante do adulto. Eu, adulto, diante de mim, adolescente.

O jovem de blusa azul, surrada com o uso, de sapatos molhados pela chuva, lendo o calhamaço de papeis: aparentemente não tinha nada, senão os sonhos. Aos quinze anos, sonhava que podia fazer tudo. Aos quinze anos estava com o coração aberto para as maiores conquistas, para os mais profundos e duradouros sentidos que podia conferir a palavras como amizade, respeito, confiança, esperança.

Os sentidos, sem dúvida, que eram os melhores, visto que mais puros, visto que ainda sem os calejamentos da vida fictícia que é esta em que se torna o dia-a-dia conduzido com as convenções sociais.
O encontro fortuito comigo mesmo levou-me a olhar-me diante dos meus olhos jovens, aqueles que, na realidade presente, já não os possuo. Dentro daquele olhar vi o meu reflexo, o reflexo de um eu transformado com o tempo.

Por olhar assim, sentia-me. Por sentir-me, me deixava levar. E aonde me levavam aqueles olhos?


***


[continua...]




"Moça diante do espelho" (1932). Pablo Picasso.

Um comentário:

Gésica Olliver. disse...

Lindos! Mas "A trágica história de Príamo e Tisbe" é sem comparação!

Opa! Que tal postá-la! rs